Da Anunciação de Maria
Maria na Encarnação do Verbo não pôde humilhar-se mais do que se humilhou: Deus por sua vez , não pôde exaltá-la mais do que a exaltou.
Santo Afonso de Ligório — Glórias de Maria, sobre a Anunciação da Santíssima Virgem Maria Mãe de Deus.
Omni die dic Maria mea laudes anima: ejus festa ejus gesta cole splendidissima (que todos os dias eu cante a Maria que com minha alma A louve. Seus feitos e suas feições honram esplendidamente).
Maria escrava humilde do Senhor
Quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. Essa é a palavra do Senhor, não pode errar: Aquele que se exalta será humilhado, e aquele que se humilhar será elevado (Mt 23,12). Donde, tendo Deus decretado fazer-se homem para redimir o homem perdido e assim manifestar ao mundo a sua bondade infinita, e tendo na terra de escolher a mãe, ia buscar entre as mulheres a que fosse dentre elas a mais santa e mais humilde. Mas de todas uma apenas exergou, e foi a virgem Maria, que quanto era mais perfeita nas virtudes, tanto mais simples e humilde, como uma pomba, no conceito que tinha de si. Dizia o Senhor, uma, porém, é a miinha pomba, uma só a minha perfeita (Ct 6,9). E assim disse a Santíssima Virgem Maria: Eis aqui a serva do Senhor ( Lc 1,8): a minha alma engrandesce o Senhor, pois ele viu a minha humildade (Lc 1,46), porque de tão pobre e pequenina ele me exaltou sobre maneira, saí da boca do altissímo; nasci antes de toda criatura (Eclo 24,5). Por isso, disse Deus, seja eleita a minha mãe. Aqui veos o quando Maria foi humilde, e por isso Deus a exaltou.
Ouvi, ó filha, vede, e inclinai os vossos ouvidos, porque o Rei se encantou com a vossa formosura. Todos os ricos do povo com dádivas suplicam o vosso olhar. As filhas dos Reis estão em vossa glória. Virgens que a seguem são conduzidas até o Rei. Suas. companheiras Vos são apresentadas. Elas são apresentadas no meio da alegria e do júbilo; são levadas ao templo do Rei. Sl 44, 11 e 12| ib., 13 e 10, 15 -16)
Maria na Encarnação do Verbo não pôde humilhar-se mais do que se humilhou; será esse o primeiro ponto. Deus não pôde exaltá-la mais do que a exaltou; esse será o segundo.
Ponto I — De como Maria não poderia humilhar-se mais do que se humilhou
Falando o Senhor no Cântico dos Cânticos justamente da humildade dessa humilíssima Virgenzinha, disse: Enquanto o rei descansar em seu divâ, meu nardo exala o seu perfume (Ct 1,11). Comenta Snato Antônio essas palavras, e dis que no nardo, por ser plantão tão pequena e baixa, está prefigurada a humildade de Maria, cujo odor subiu ao céu, e do seio do Pai Eterno atraiu ao seu útero virginal o Verbo Divino. De modo que o Senhor, atraído pelo odor dessa humilde Virgenzinha, escolheu-a por mãe ao fazer-se homem para redimir o mundo. Mas ele, para maior glória e mérito dessa mãe, não quis fazer-se dela filho sem ter dela o consentimento, diz Guilherme, o abade. Daqui, enquanto a humilde Virgenzinha estava no seu pobre casebre, e suspirava e rogava a Deus com maior desejo então do jamais antes mandasse o Redentor, como foi revelado a Santa Isabel, monja de São Bento, eis que vem o arcanjo Gabriel para trazer-lhe a notícia; entra e a saúda dizendo: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres (Lc 1,28;1,42): Ave, ó Virgem cheia de graça, pois fostes vós sempre rica em graça acima de todos os santos. O Senhor é convosco, porque sois assim tão humilde. Vós sois bendita entre as mulheres, visto que todas as outras incorreram na maldição da culpa, mas vós, porque Mãe do Bendito, fostes e sereis sempre bendita e livre de toda mancha.
Glória devemos a Deus, que formou uma Obra prima em Maria — Jesus Cristo Senhor nosso — que reina em igual majestade com o Pai nos céus.
A humilde Maria, entretanto, a essa saudação, assim cheia de louvor, o que responde? Nada; não respondeu, mas pensando na saudação perturbou-se: Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação (Lc 1,29). — E por que se perturbou? Acaso por medo que fosse ilusão, ou por modéstia, já que viu um homem, como tentou explicar alguém pensando que o anjo lhe apareceu sob forma humana? Não, o texto é claro: perturbou-se com estas palavras; repara Eusébio Emisseno: “Não com a aparição, mas com as palavras”. Veio portanto a perturbação inteiramente da humildade ao ouvir aqueles louvores tão distantes do conceito que de si fazia. Donde quanto mais ouve exaltar-se pelo anjo, mais se abaixa e põe-se a considerar o seu nada. Reflete aqui São Bernardinho e diz que se o anjo lhe houvesse dito que ela era a maior pecadora do mundo, Maria não se espantaria tanto; mas de ouvir aqueles louvores tão excelsos, perturbou-se toda. Perturbou-se porque, sendo tão cheia de humildade, aborrecia todo louvor seu, e desejava que o seu Criador e dador de todo bem fosse louvado e bendito; assim, Maria mesma disse a Santa Brígida, falando do momento em que foi feita Mãe de Deus.
Mas pelo menos, digo eu, já bem havia a Santíssima Virgem aprendido nas Sagradas Escrituras que já era chegado o tempo predito pelos Profetas da vinda do Messias, já foram cumpridas as semanas de Daniel, já fora, segundo a profecia de Jacó, passado à mão de Herodes, rei estrangeiro, o cetro de Judá, já sabia que uma virgem havia de ser a mãe do Messias; ouve então o anjo aqueles louvores, que não pareciam convir a outra senão à mãe de Deus; terá lhe ocorrido então o pensamento, ao menos um: quem sabe não era ela essa mãe eleita de Deus? Não, a sua profunda humildade não deixou nem mesmo passar por ela esse pensamento. Puderam aqueles louvores somente incutir-lhe grande temor, de tal modo que, como reflete São Pedro Crisólogo, tal como o Salvador quis ser confortado por um anjo, assim foi necessário que São Gabriel, vendo Maria tão espantada com aquela saudação, a animasse dizendo: Não temas, ó Maria, nem vos assombreis com os títulos grandiosos com que vos saudei, pois, se aos vossos olhos vós sois pequena e baixa, Deus, que exalta os humildes, fez-vos digna de encontrar a graça perdida pelos homens, e por isso Ele vos preservou da comum mancha de todos os filhos de Adão; por isso desde a vossa Conceição vos honrou com uma graça maior do que a de todos os santos; por isso, enfim, agora vos exalta a ponto de fazer-vos sua mãe: Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe darás o nome de Jesus (Lc 1,31).
Pois agora, então, o que aguarda? “Senhora, o anjo aguarda a vossa resposta” — diz São Bernardo — “antes, aguardamo-la nós, condenados que somos à morte. Eis, ó mãe nossa, a vós já se oferece o preço da nossa salvação, que será o Verbo Divino em vós tornado homem; se vós o aceitardes por filho, imediatamente seremos da morte liberados; o vosso mesmo Senhor, por enamorado que esteja da vossa beleza, ainda assim deseja o vosso consentimento, pelo qual determinou salvar o mundo”. Retoma Santo Agostinho: “Depressa, Senhora, respondei; não adieis mais ao mundo a salvação, que do vosso consentimento depende.
Mais eis que Maria responde; responde ao anjo e diz: Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a vossa palavra (Lc 1,38). Ó resposta, que mais bela, mais humilde e mais prudente não poderiam ter inventado toda a sabedoria dos homens e dos anjos em conjunto, mesmo que pensassem por um milhão de anos! Ó resposta poderosa, que alegrastes o céu e trouxestes à terra um mar imenso de graças e bens! Resposta que, apenas saída do humilde coração de Maria, atraíste do seio do Pai Eterno o unigênito Filho ao seu puríssimo útero para tornar-se homem! Sim, porque apenas proferiu aquelas palavras, o FIlho de Deus virou o filho também de Maria. “Ó poderoso “faça-se!” — exlama São Tomas de Vilanova — ó faça-se eficaz, ó augustíssimo faça-se!”. Pois com os outros faça-se Deus criou a luz, o céu, a terra; mas com esse de Maria, diz o santo, um Deus virou homem como nós.
Mas não nos afastemos do nosso ponto; consideremos como foi grande a humildade da Virgem nessa resposta. Por certo fora ela iluminada a conhecer como era excelsa a dignidade de ser Mãe de Deus. Assegurava-lhe já o anjo que era ela essa beata mãe eleita pelo Senhor. Mas apesar disso não cresce nada o conceito que tem de si mesma, não se detém nem por um momento para comprazer-se da sua exaltação; tendo em vista de um lado o seu nada e de outro a infinita majestade do seu Deus, que a escolhia por mãe, reconhece-se indigna de tamanha honra, mas não quer opor-se nem um pouco à sua vontade. De modo que, solicitando o seu consentimento, o que faz? O que diz? Ela, anulada em si mesma, toda inflamada, por outro lado, pelo desejo de unir-se mais com Deus, abandonando-se toda à divina vontade: Eis aqui, responde, a escrava do Senhor. Eis a escrava do Senhor, obrigada a fazer o que o seu Senhor comanda. E queria com isso dizer: “Se o Senhor escolhe por mãe a mim, que nada tenho de meu próprio, tudo o que tenho é presente seu, quem poderá pensar que Ele me escolhe por mérito meu? Eis a escrava do Senhor. Que mérito poderá ter uma escrava para se tornar mãe do Senhor? Eis a escrava do Senhor. Louve-se apenas, pois, a bondade do Senhor, e não se louve a escrava, já que é nada mais do que bondade sua pôr os olhos numa criatura tão baixa como eu e tão grande torná-la”.
“Ó grande humildade de Maria” — exclama aqui Guerrico, o abade — ,”que a tornou pequena para si mesma, mas grande diante de Deus! Indigna aos olhos seus, mas digna aos olhos do seu imenso Senhor, que nem o mundo inteiro pôde abarcar!”.
Porém, mais bela ainda a esse respeito é a exclamação de São Bernardo no sermão quarto sobre a Assunção de Maria, onde diz, admirando a humildade de Maria: “Senhora, como pudestes unir no vosso coração conceito de vós mesma tão humilde com tanta pureza, com tanta inocência, com tanta plenitude”, segue o santo, “ó virgem besta, se arraigou tanto em vós essa humildade, e humildade tamanha, sendo que vós víeis tão honrada e exaltada por Deus?”.
Lucifer vendo-se dotado de grande beleza, aspirou a alcançar o seu trono sobre as estrelas e tornar-se semelhante a Deus: Escalarei os céus e erigirei meu trono acima das estrelas… Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo (Is 14, 13–14). Ora, o que diria ao que aspiraria o Soberbo, caso se visse ornado das qualidades de Maria? A humildade de Maria não fez assim: quanto mais se viu exaltada, tanto mais se humilhou. “Ah, Senhora, por essa tão bela humildade" — conclui São Bernardo — ”bem vos tornastes digna que vos resguarde Deus com singular amor: digna que de vos se enamore o vosso Rei pela vossa beleza: digna que arrasteis pelo suave odor de vossa humildade o eterno Filho do seu repouso, do seio de Deus, ao vosso puríssimo útero". Donde diz Bernardino de Bustis que Maria mereceu mais por aquela resposta: Eis a escrava do Senhor, do que seriam capazes de merecer juntas todas as criaturas com todas as suas obras. Assim é, diz São Bernardo, uma vez que essa inocente Virgem ainda que pela sua virgindade se tivesse tornado cara a Deus, não obstante pela humildade tornou-se ainda por cima digna, tanto quanto o poderia uma criatura, de ser feita Mãe do seu Criador. E o confirma São Jerônimo dizendo que Deus mais pela sua humildade do que por todas as suas outras excelsas virtudes a escolheu por Mãe. Maria mesma o exprimiu à Santa Brígida, dizendo: “Donde mereço uma graça tal de ser feita Mãe do meu Senhor, senão porque reconheci o meu nada e me humilhei?”. E antes o declara no seu humilíssimo cântico, quando disse: Porque olhou para a sua sobre serva… porque realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso (Lc 1, 48–49). Onde nota São Lourenço Giustiniani que a Santíssima Virgem “alude a que Deus antes olhou à sua baixeza do que à sua virgindade e inocência". E por essa humildade, adverte São Francisco de Sales, não pretendia Maria louvar a sua virtude da humildade, mas declarar que Deus considera o seu nada, e por sua mera bondade quisera assim exalta-la.
Em suma, diz Santo Agostinho que a humildade de Maria foi como uma escada pelo qual o Senhor se dignou descer à terra para fazer-se homem em seu seio. E confirmou-o Santo Antonino, dizendo que a humildade a Virgem foi sua disposição mais perfeita e mais próxima para ser Mãe de Deus. E com isso entende-se o que predisse Isaías: Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes (Is 11,1). Reflete o Santo Alberto Magno que a flor divina, isto é, o unigênito de Deus, como disse Isaías, devia nascer não dá sumidade a humildade da mãe. E mais claramente o explica o abade de Celles: “Repara que não é dá sumidade, mas da raiz que sobe a flor". E por isso disse o Senhor a essa dileta filha: Seus olhos são como pombas à beira dos relatos (Ct 5,12). Santo Agostinho: “E voar de onde, senão do seio do Pai ao útero da Mãe?”. Sobre o qual diz o doutor intérprete Fernandez que os humilíssimos olhos de Maria, pelos quais demorava sempre a divina grandeza, sem jamais perder de vista o seu nada, fizeram tal violência a Deus mesmo que o arrastaram ao seu seio. E com isso se entende, diz o abade Francone, por que o Espírito Santo louvor tanto a beleza dessa sua esposa pelos olhos de pombas: Tu és bela, minha querida, tu és formosa! Por detrás do teu véu os teus olhos são como pombas (Ct 4,1). Porque Maria, olhando para Deus com olhos de pomba simples e humilde, tanto o enamorou por sua beleza que com liames de amor o fez prisioneiro no seu útero virginal. Assim fala o abade Francone: “Onde por toda a terra tão formosa Virgem e com grilhões de caridade o trouxesse cativo por meio de pia violência". De modo que Maria — encerremos este ponto — na Encarnação do Verbo, como vimos no começo, não pôde humilhar-se mais do que se humilhou.